Há no nosso cotidiano uma sequência de coisas corriqueiras, atividades que desenvolvemos de forma mecânica que, para a maioria das pessoas, o fato de não pensarmos sobre sua funcionalidade não influi em nada no cumprimento das mesmas.
Questionamentos como – Por que tomar banho todos os dias se iremos nos sujar novamente? Por que arrumar a cama pela manhã se pela noite ela será desarrumada para novamente deitarmos? Por que lavamos as mãos se a sujaremos? – tornam-se insignificantes perante a corrida rotina de atividades demasiadas valorizadas que devem ser desenvolvidas durante o dia. A máxima do pensamento benjaminiano, “time is money”, impera em nossa mentalidade levando-nos a supervalorizar apenas as atividades que correlacionam com aquilo que nos gera o sentimento de utilidade, assim, tais perguntas passam a ser apontadas apenas como hábito impertinente de filósofos, psicólogos e sociólogos que insistem em questionar sobre tudo e nada. Como tais, ousemos analisar tais costumes.
Primeiramente, partamos do pressuposto sociológico de que a sociedade em si não se constitui apenas de pessoas, entendidas meramente como organismos biológicos, mas, segundo Durkheim, de elementos culturais simbolicamente transmitidos através de gênese, valores, conhecimentos, ações, crenças, entre outros.
Se não me submeto às convenções da sociedade, se, ao vestir-me, não tenho em conta os usos seguidos no meu país e na minha classe, o riso que provoco e a aversão que suscito produzem, ainda que de uma maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. (Durkheim, 1989, p. 30).
Assim, adequar-se aos padrões, e no caso de nossos questionamentos padrões tidos básicos do asseio pessoal e de higienização, é submeter-se ao processo de convenções da sociedade – de maneira mais velada, aderimos aos padrões do ethos pré-estabelecido. Tal como inferido por Marcuse, “os valores podem ter uma dignidade mais elevada (moral e espiritualmente), mas não são reais e, assim, têm menos importância no assunto real da vida – quanto menos assim for, tanto mais serão elevados acima da realidade” (MARCUSE, 1978, p. 145). Intui-se que ninguém será punido por alínea de Direito Penal se deixar de tomar banho ou simplesmente não lavar as mãos antes das refeições. Porém existe a censura social que está para além dos códigos de direito e tem influência direta em nossas condutas.
Relata-se que no Brasil a tradição do banho deriva do hábito dos nativos de se banharem por diversas vezes ao dia. Método aos poucos aderido pelos portugueses devido à climática, o que era tido como um ato público, imbui-se como premissa fundamental para que os outros tenham uma boa impressão de nós mesmos.
Para Jean Piaget, referência na teoria de desenvolvimento humano, nascemos com certa tendência ao desenvolvimento de “conceitos espontâneos”, no entanto, a partir da realidade e contexto em que somos formados criamos dependência a “conceitos não espontâneos”, estes são adquiridos pela total influencia dos adultos. Conceitos aqui entendidos como formação de opiniões e julgamentos conscientes a respeito de atitudes e atividades a serem desenvolvidas.
Há na realidade um cerceamento do que seja certo ou errado em nossas atividades do dia a dia (associado à herança familiar cultural) a tal ponto que, ao não correspondermos a elas desenvolvemos um desencadeamento de ‘angustias cotidianas’; do contrário, o cumprimento das mesmas leva-nos “a maturação que consiste, essencialmente, em abrir possibilidades novas e constitui, portanto, condição necessária do aparecimento de certas condutas”. (PIAGET; INHELDER, 1986, p. 130). Assim, além da herança nativa, a fatalidade de desde pequenos sermos conduzidos aos obrigatórios banhos diários é a principal responsável pelo sentimento de obrigatoriedade, consciente e inconsciente; o que ocorre também com as demais atividades de higienização.
Realizar tais atividades diariamente sem pensar não significa que, por trás do ato, não haja um sentido a priore; mesmo que este seja meramente moral. No entanto, há sempre um escape de todos esses hábitos. Há sempre alguém que não tomou banho, alguém que não lavou as mãos antes de almoçar ou após ir ao banheiro, alguém que não arrumou a cama, alguém que não forjou a “significação dos gestos, palavras, atos insignificantes, assim como dos espetáculos, formas e símbolos, que ele aprende na vida cotidiana” (LACAN, 1987, p. 16). Portanto, encaremo as atividades do cotidiano não pensado como hábitos condicionados, claro, suscetíveis ao não cumprimento.
Frei Francis Armando
Bragança Paulista/SP
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Referências:
DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
LACAN, Jacques. Da Psicose Paranoica em suas relações com a personalidade, seguido de primeiros escritos sobre a paranoia. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, 405p.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 142 – 162.
PIAGET, J.; INHELDER, B. A psicologia da criança. São Paulo: Difusão, 1986.
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